Reza a lenda que quem é do mar tem uma certa intimidade com a natureza. É só olhar para aquela imensidão e saber quando será maré cheia, maré seca, posição do vento, se vai chover, se vai ter ressaca do mar, e tantas outras informações preciosas de quem conhece essa linguagem salgada, cheia de maresia.
E quem vive do mar, quem dele tira seu sustento, parece ter uma certa poesia no modo de falar e de viver a vida. Conversa de pescador? Com certeza não, pois dele vem a vivência. Mar também é paladar, é memória afetiva construída em cada receita feita dos milhares de ingredientes desse universo para uns, verde; para outros, azul.
“O mar é minha vida. Significa tudo!”, resume Zenaide da Silva, a dona de receitas de moquecas mais famosa da praia de Requenguela, no município de Icapuí. “Tem gente que não gosta de moqueca, mas eu insisto, tem que provar. Aí a pessoa prova e gosta, elogia, e eu fico feliz”, rir Zenaide, contando orgulhosa da profissão que abraçou. Há 23 anos, seu ofício é cozinhar, segundo ela, uma das decisões mais importantes de sua vida.
Contando um pouco da sua história, deixa claro as raízes: é filha de marisqueira e de pescador, ou seja, carrega o mar no sangue. Ainda muito nova pediu permissão ao pai para trabalhar na Capital, em casa de família. Foi uma experiência dura, mas que a fez amadurecer, porém não perdurou, e logo estava de volta. Conheceu o marido, engravidou e no nascimento do primeiro filho nasceu também uma oportunidade, o pai a chamou para trabalhar e morar na barraca de praia da família, a Barraca do João Velho. Enquanto o pai servia bebidas, Zenaide cuidava dos tira-gostos.
Grandeza na simplicidade
“Todas as receitas são minhas, fui aperfeiçoando e aprendi a cozinhar na marra, por necessidade, para dar de comer aos meus três filhos”, afirma. Nesses 23 anos muita coisa mudou, o pai se aposentou, e Zenaide divide a lida da barraca com a irmã. Também não mora mais lá, há dois anos construiu sua casa. As receitas evoluíram, assim como os sonhos, um deles é se tornar chef de cozinha. “Já ganhei concurso no festival da lagosta, e até hoje, quando as pessoas falam da minha comida, a maioria é elogio”, diz orgulhosa.
Zenaide já participou do Encontro Povos do Mar, projeto pioneiro idealizado e desenvolvido pelo Sesc Ceará. Para ela, foi uma oportunidade para absorver o que as comunidades vizinhas têm de melhor. “Nos fortalecemos em forma de conhecimento e aprendizagem. Estava com pessoas iguais a mim, pescadores e marisqueiras, pessoas guerreiras”, resumiu.
Sobre a experiência, Zenaide revela que, no início, achava que ia cozinhar para pessoas “importantes, chiques”, uma oportunidade de mostrar sua comida. “Mas, chegando lá me decepcionou porque encontrei pessoas iguais a mim. Aí com o tempo a ficha caiu, vi a oportunidade de aprender com pessoas como eu, mas que tinham outras coisas para ensinar e percebi que também somos importantes, e que a grandeza do projeto é também pela grandeza dos seus participantes, pescadores e marisqueiros que nem eu”.
Tesouros do mar
Francisco Osmildo Silva Santos, o Lilico, da praia do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, também sabe da sua importância como pescador, como um conhecedor do mar. “Tenho outras profissões, mas a de pescador é a que eu mais amo”, revela. É porque o pescador é antes de tudo um corajoso, enfrenta o mar de peito aberto, e acaba levando essa coragem para a vida, para enfrentar as suas dificuldades.
E foi nesse enfrentamento do dia a dia que nasceu a receita de buchada de peixe, famosa por lá. Lilico lembra que quem era pescador não tinha direito de comer um peixe inteiro, principalmente os nobres e grandes. A única coisa a se fazer era limpar e botar para vender. Pois aí surgiu a ideia de pegar esses miúdos e fazer a buchada de peixe. “Minha mãe começou. Somos sete irmãos, muita dificuldade e muita gente para alimentar”, conta.
A receita está na cabeça e no coração. “Vem uma lembrança cheia de alegria, de satisfação de chegar em casa e todo mundo cozinhar junto. Era uma infância gostosa a que a gente tinha”, se dá conta. Além disso, lembra Lilico, a fartura do pescado já não é mais a mesma. O aumento do número de barcos e da demanda vem resultando em menos peixe, e se falta peixe, também não tem buchada. “Antes tínhamos muito peixes nobres, camurupim, pargo, beijupirá, cioba, garoupa. Para fazer a buchada tem que ter muito peixe, e peixe grande. Hoje quando faço a receita dá uma saudade, sai lágrima dos olhos, é porque passa um filme da vida da gente, sabe?”.
Falando da importância do mar para a sua vida, Lilico agradece. Diz que é um privilegiado porque conta com as riquezas e tesouros que o mar oferece. Por isso, acredita que o Povos do Mar será para ele um momento de valorização, principalmente da cultura das regiões litorâneas do Estado. “Cada comunidade pesqueira tem suas particularidades. Acho isso sensacional, é um encontro de diversidade de costumes e práticas. Tenho certeza que vou sair de lá encantado”, pondera.
“Na terra em que o mar não bate
Não bate o meu coração
O mar onde o céu flutua
Onde morre o sol e a lua
E acaba o caminho do chão
Nasci numa onda verde
Na espuma me batizei
Vim trazido numa rede
Na areia me enterrarei…”
Beira Mar – Gilberto Gil
Receitas
Buchada de Peixe
Ingredientes:
1kg ou 1,5kg de “bucho” do peixe
500ml de leite de coco
2 colheres de coloral
1 cheiro verde
1 cebola
1 pimentão
1 tomate
3 dentes de alho
6 a 8 pimentas do reino
2 colheres de óleo
Sal a gosto
Modo de preparo:
Coloca o óleo e as verduras para refogar por 10 minutos, depois acrescenta o “bucho” do peixe e o leite de coco. Cozinhar por 20 minutos na panela de pressão. Depois é só servir.
Moqueca de búzios
Ingredientes:
350g de miolo do búzio
Meia cebola grande
1 tomate pequeno
Meio pimentão
1 pimenta de cheiro
Cheiro verde a gosto
Uma pitada de pimenta do reino
Uma pitada de colorau
Uma colher de óleo de soja
300ml de leite de coco in natura
Modo de preparo:
Picar todas as verduras. Acrescentar o óleo, o colorau e as verduras. Refoga. Acrescenta os búzios e refoga. Quando as verduras estiverem quase cozidas coloca 150 ml de leite de coco. Após encorpar o caldo, acrescentar o restante do leite de coco. Após ferver, está pronto para servir.