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As Mulheres da Aldeia
As Mulheres da Aldeia

Cacique da etnia Karão, a cearense Maria José fala sobre outro papel importante em sua comunidade: o de ‘mãe outra’, que revela o profundo senso de coletividade praticado nas comunidades indígenas 

Perguntada há quanto tempo é cacique, Maria José Cordeiro Lima perde as contas. “Há muito anos, desde sempre”, tenta resumir, frente a uma vida inteira de protagonismo na tribo dos Karões, etnia indígena cearense, situada na serra de Baturité. Hoje com 57 anos, ela acumula não apenas a posição de chefe da sua comunidade, mas de outra igualmente importante: a de “mãe outra”.

 

O nome é literal: trata-se da figura feminina na tribo que cuida não apenas de seus próprios filhos, mas de outras crianças, enquanto os pais se ausentam para o trabalho, estudos ou outras tarefas. A ajuda, na verdade, estende-se a todos da comunidade, embora tenha destaque no zelo com os pequenos.

“A gente se acostuma a ter muitas mães, né? Primeiro a Mãe Terra, de todos nós. Já a ‘mãe outra’ é aquela que ajuda os outros. Ajuda aqui, ali, a comunidade toda. Onde eu alcanço estou presente. Algumas mães trabalham, outras estudam, fico com os filhos delas, mas também ajudo adultos”, explica Maria José.

A dificuldade em definir seu papel vem, portanto, do próprio alcance dele. Como ‘mãe outra’, a cacique torna-se não apenas cuidadora, mas uma grande referência na tribo, com presença forte em várias esferas da vida em comunidade.

“É uma responsabilidade enorme, mas é uma coisa que eu gosto muito. Aqui somos todos iguais, homem, mulher. A diferença está em algumas tarefas quando envolve carregar peso, mulher não pode pegar muito peso. Mas de resto fazemos por igual, plantamos, construímos nossas casas, fazemos juntos. E estou sempre no meio deles passando o que acho melhor, a maneira como aprendi com meus pais. Ensino tudo, os perigos, os cuidados”, relata a cacique.

O processo que envolve tornar-se uma ‘mãe outra’ é tão orgânico quanto gradual, que atravessa gerações. “Sou a mais velha da minha família, ajudei a cuidar das minhas irmãs, depois vieram os filhos, os sobrinhos, os netos. Na aldeia, uma mãe precisou, aqui estou”, resume Maria José.

Ela explica que a escolha é baseada justamente nessa disponibilidade. “É de quem tiver bondade, generosidade. De escolher aquelas pessoas porque conhece, confia. Vai tomando conta de um, de outro, até virar ‘mãe outra’”.

Mas a cuidadora da comunidade também precisa de ajuda, pelo menos quando a tarefa é sair da aldeia. Maria José será uma das participantes do IX Encontro Sesc Povos do Mar, que acontece de 22 a 26 de setembro. Em sua fala, ela vai abordar aspectos da parentalidade na etnia Karão, o protagonismo feminino nesse contexto e sobre a vivência como cacique, entre outros aspectos. Será a primeira vez da indígena no evento.

“Ave Maria, nunca fui pra canto nenhum!”, revela, bem humorada. “Não sou acostumada a sair, mas sei que é muito bom, é importante. Na mata não tem problema, mas na cidade? Se não tiver uma pessoa comigo faço é me perder. Ainda bem que tem gente pra ir comigo”, ri.